29 outubro, 2005

ainda não sei

Mexo com a colher uma xícara vazia. Vazia como minha cabeça agora.

-- ma aua os s or?

Penso em como o cinema influencia a literatura, nas formas narrativas cinematográficas do novo romance. As descrições hollywoodianas da literatura pop. Cenas que causam impacto visual e "cortes estratégicos". Não se faz mais literatura, se escreve roteir...

-- Ma a uma oisa s nhor?
-- Hã?
-- Mais alguma coisa senhor??
-- aah! Não, muito obrigado.

Dito isto ela retira a xícara e com ela a minha tentativa de distração. Há quanto tempo estou aqui? Não sei dizer. Olho as pessoas em volta, todas absortas na mesquinharia
diária. Será que alguma delas se importa com as sutilezas? Com os filmes do Felline?

O velho no fundo do bar olha fixamente para mim desde que entrei aqui, horas atrás. Será que por alguma arte obscura da observação ele sabe o que eu penso? Nossa! Preciso de mais café!

O velho se levanta e anda até o balcão, pede dois cafés e senta na na minha mesa.

-- A resposta é sim. -- Diz ele.
-- Desculpe, não entendi.
-- Acho muito importantes os filmes do Felline.

Estou surpreso! talvez tenha sido coincidência. Verifico se a página aberta do jornal na minha frente tem alguma coisa sobre Felline. Nada. Não pode ter sido coinci...

-- E não foi. -- Diz o velho.

Me espanto! O velho percebe e parece decepcionado.

-- hummm, pensei que você não ofereceria resistência. Pelos seus pensamentos me pareceu que você...
** ansiava por isto.

As últimas palavras ele pronuncia sem mover os lábios. É estranho, elas soam tão nítidas, mas parecem não ter qualquer direção, como quando se usa fones de ouvido.

** É, a analogia serve, mas não é a mais apropriada. Mesmo com fones de ouvido os tímpanos sentem a vibração do som, há uma sensação física e neste caso não há.

Novamente os lábios não se mexem. Lembro da Isabel e puxo o dedo, talvez seja um sonho. ele rí (ainda sem abrir a boca).

** Não, não é um sonho. Eu não esperava resistência, mas até que foi tão rápido quanto eu havia planejado, apesar de não tão rápido quanto eu achava que seria, sabe como é, sou um otimista!

Levo a mão ao bolso do casaco, ao mesmo tempo o velho procura alguma coisa no bolso de seu paletó. Tiro um cigarro do meu e ele um isqueiro, ele acende o meu cigarro e guarda o isqueiro.

-- O que é isto?
** É melhor você não falar, apenas diga. E não olhe diretamente para mim, finja que está lendo o jornal.
** É assim?
** Isso, você aprende rápido.
** Bom, como você faz isso? e porque?
** Como, eu não sei, só sei fazer, mas normalmente não consigo uma freqüência tão limpa, em geral só ouço ruídos subconscientes, coisas bem bizarras. Por isso achei que você era quem eu pensava que era. E essa já é a resposta do porquê.
** Como assim?
** Já disse para não me olhar diretamente! Assim está melhor. Talvez você seja uma pessoa muito importante para mim, alguém que eu espero há muito tempo.
** Quanto tempo?
** Muito.
** Mas o que quer que eu faça? Será que eu também posso...
** Talvez. O que eu quero de você? Bem, não sei ainda. Talvez fosse mais correto saber o que VOCÊ quer de mim. Vou dar uma volta.
** Mas...
** Tudo ao seu tempo meu jovem, tudo ao seu tempo.

O velho sai. Eu fico. Mexo com a colher uma xícara vazia...